O Brasil adotou a forma republicana de governo. República vem de res publica, que significa coisa pública, coisa de todos, de todo o povo. Por isso o parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal enunciar que todo poder emana do povo.
Ocorre que não há como o povo, verdadeiro titular do poder, administrar esta “coisa pública”, razão pela qual o Ordenamento Jurídico criou uma complexa estrutura com o objetivo de gerir todo este aparato. Trata-se da “Administração Pública”, matéria afeta à temática da “organização administrativa”.
Assim, existe um conjunto de entes, entidades, órgãos e agentes que serão responsáveis pela gestão da coisa pública. Da mesma forma que se passa no direito privado, para que uma pessoa represente outra é necessário que aquela esteja munida de poderes para tanto, o que, naquele seguimento do direito, se concretiza por um instrumento de mandato, uma procuração. Em regra, apenas nestes termos teria uma pessoa legitimidade para representar outra.
Acontece que não seria viável que cada um do povo, verdadeiro titular do poder, tivesse que outorgar uma procuração a cada agente público para que este agisse em seu nome na busca dos interesses da coletividade. É necessário algo como uma “procuração geral”, onde todos, de uma só vez, atribuíssem legitimidade para os agentes públicos. Daí a criação de nosso sistema representativo, onde o povo elege seus representantes que irão legislar em prol da sociedade. Eis a “procuração geral” atribuindo legitimidade aos agentes públicos.
Por isso que a Administração Pública só pode agir se houver lei autorizando ou determinando a conduta. Por outras palavras: o desenvolvimento das atividades administrativas está subordinado à lei, o que significa que a Administração apenas pode agir se houver legitimidade – leia-se lei.
Como averba CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO[1], a atividade administrativa deve não apenas ser exercida sem contraste com a lei, mas, inclusive, só pode ser exercida nos termos da autorização contida no sistema legal. Por isso acertada é a conclusão do saudoso SEABRA FAGUNDES[2] quando afirma que “administrar é aplicar a lei de ofício”.
Conclui-se disso que a ausência de lei (omissão legislativa) significa que o administrador não pode agir, mesmo que tal conduta não seja proibida. Em resumo: a atividade só pode ser realizada se expressamente prevista em lei como permitida ou obrigatória.
No que tange ao princípio da legalidade aplicável aos concursos públicos, o art. 37, incisos I e II da Constituição Federal são claros ao enunciar que:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
Saca-se da norma em evidência que todos os requisitos de admissibilidade a cargos, empregos e funções públicas devem está previstos em Lei. Embora o edital seja conhecido como a “lei interna do concurso”, cujas regras obrigam candidatos e Administração Pública, é imperioso sempre ressalvar que as disposições editalícias não devem distanciar-se dos preceitos legais e muito menos da Constituição Federal.
O princípio da legalidade significa que a Administração Pública está, em toda sua atividade, inclusive nos concursos públicos, presa aos mandamentos da Lei, deles não se podendo se afastar sob pena de invalidade do ato e responsabilidade de seu autor. Qualquer ação da Administração sem o correspondente amparo legal ou que exceda ao âmbito delimitado pela lei é injurídica e expõe-se à anulação. Assim, a Administração Pública nada pode fazer senão o que a lei determina[3].
Neste sentido se manifestou o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL no julgamento da ADI 1188 MC/DF, cuja relatoria coube ao Ministro Marco Aurélio:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LIMINAR. CONCURSO PÚBLICO. JUIZ DO TRABALHO SUBSTITUTO. REQUISITOS. IMPOSIÇÃO VIA ATO DO TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO.
“Apenas a lei em sentido formal (ato normativo emanado do Poder Legislativo) pode estabelecer requisitos que condicionem ingresso no serviço público. As restrições e exigências que emanem de ato administrativo de caráter infralegal revestem-se de inconstitucionalidade.” (Jose Celso de Mello Filho em “Constituição Federal Anotada”).
Incompatibilidade da imposição de tempo de prática forense e de graduação no curso de Direito, ao primeiro exame, com a ordem constitucional[4].
Não pode o edital inovar e criar exigências sem respaldo legal, pois além de afrontar a legalidade, princípio genérico direcionado a toda Administração Pública, também estará violando o princípio específico da competitividade e da ampla acessibilidade aos cargos públicos.
Cita-se o caso da prova física em um concurso para ingresso na Polícia Militar. Normalmente as leis que regulamentam a carreira possuem a previsão de que dentre as provas que os candidatos irão se submeter existe a avaliação física. A previsão legal existe, porém cabe ao gestor decidir, pautado em parâmetros razoáveis e proporcionais, quais os exercícios físicos serão exigidos e qual será a quantidade mínima necessária à aprovação na atividade.
Ocorre que muitas vezes o gestor ao realizar um concurso exige requisitos restritivos de acesso ao cargo público sem a correspondente previsão legal. Neste caso, a violação ao princípio da legalidade possui norma ainda mais específica, a que se encontra insculpida no artigo 37, inciso I, da Constituição Federal.
Isso também ocorre em relação ao exame psicotécnico, onde o administrador, seja por despreparo ou por malícia, o que não queremos acreditar, insere esta exigência no edital para o provimento de cargos cuja lei de criação e que apresenta os requisitos de acesso ao mesmo não exige a aprovação no referido exame psicossomático.
Repugnando comportamentos desta natureza os Tribunais superiores sistematicamente tem decidido que é pressuposto para a exigência válida do exame psicotécnico que a mesma possua previsão legal[5].
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL até editou a súmula 686 tratando da matéria, onde ficou pacificamente decidido que “só por lei se pode sujeitar a exame psicotécnico a habilitação de candidato a cargo público”[6].
Outro exemplo em que com frequência verifica-se a violação ao princípio da legalidade é quando o edital exige requisitos de acesso ao cargo além daqueles previstos na lei que criou o mesmo. É o caso muito comum de se exigir no edital curso especialização, pós graduação, etc., como requisito de acesso ao cargo, quando a lei que o criou não faz essa exigência.
Relembre-se que o art. 37, incisos I e II, da Constituição Federal são claros ao enunciar que:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
I – os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei;
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;
Interpretando o comando constitucional traz-se à lume a preciosa lição de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO[7]:
O direito de acesso ao serviço público não é desprovido de algumas exigências. Por esse motivo, o texto constitucional deixou bem claro que o acesso pressupõe a observância dos requisitos estabelecidos em lei.
Assim, os requisitos do cargo ou de emprego público a ser provido devem constar em lei, não podendo um ato infra legal inovar criando outros critérios não previstos em lei.
[1] Curso de Direito Administrativo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 76.
[2] O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 5. ed. Forense, 1979, p. 4-5.
[3] GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 7.
[4] ADI 1188 MC/DF, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/1995.
[5] Veja ainda os seguintes julgados. No Supremo Tribunal Federal: AgRg-AI 658.527-1 (813) – 1ª T. – Relª Minª Cármen Lúcia – DJ 20.02.2009, AI 529219 AgR – 2ª T. – Rel. Min. Joaquim Barbosa – DJ 26.03.2010, AI 676675 AgR – 2ª T. – Rel. Min. Ellen Gracie – DJ 25.09.2009. No Superior Tribunal de Justiça: AgRg-REsp 977.773 – DF – Proc. 2007/0201213-9 – 5ª T. – Relª Minª Laurita Vaz – DJ 29.03.2010, REsp 1.046.586 – DF – Proc. 2008/0075253-9 – 5ª T. – Rel. Min. Jorge Mussi – DJ 29.03.2010, AgRg-AgRg-REsp 773.288 – DF – Proc. 2005/0133056-2 – 6ª T. – Rel. Min. Celso Limongi – DJ 01.02.2010.
[6] Além da necessidade de lei prevendo o referido exame, é necessário que mesmo seja baseado em critérios objetivos e científicos, que o resultado com as razões da inaptidão, seja de conhecimento do candidato, possibilitando ao mesmo a impugnação do resultado na via administrativa ou judicial. A ausência de qualquer um destes requisitos fulmina a validade do exame.
[7]Manual de Direito Administrativo, Ed. Lúmen Júris, 23ª Edição, Rio de Janeiro, 2010, p. 701.